Um dia desses um amigo veio me contar de uma situação que frequentemente o deixa irritado. Mas o que me chamou atenção foi que, antes mesmo dele contar da sua irritação, ele já fez esse preâmbulo que ao meu ver quase não admitia como legítima a sua irritação.
"Sei que isso é reflexo da minha insegurança e baixa auto estima e que eu tenho que melhorar.”
Não terceirizar minha irritação não significa que não posso senti-la
Eu aprecio a consciência do meu amigo sobre seus sentimentos e necessidades, e por não terceirizar a sua irritação para outra pessoa. De fato, se eu sinto algo, isso diz muito sobre mim - e se eu espero que a outra pessoa adivinha ou satisfaça o que é importante para mim, eu vou sempre me frustrar. Mas eu acredito que minhas emoções não informam só sobre mim, mas também dizem muito sobre a relação.
Essa lógica de “eu é que tenho que melhorar” muitas vezes nos afasta da percepção mais ampla do fenômeno, e de que, frequentemente, não é só sobre mim. Muitas vezes as emoções que emergem em mim, refletem um pedido de ajuste na dinâmica da relação. Inclusive, até para que eu possa evoluir, essa evolução será facilitada através do olhar para a relação.
Emoções são relacionais
Nossas emoções são complexas, e nascem sempre a partir de dinâmicas que ocorrem nas relações. Por isso, acredito que essa abordagem de acreditar que sempre que sinto algum incômodo é porque preciso melhorar algo em mim é reducionista, e por isso não dá conta da complexidade da experiência emocional.
Aprendi com Humberto Maturana que emoções são sempre relacionais - embora pareça que a emoção seja totalmente individual porque de fato sentimos reações fisiológicas no nosso corpo, emoções nascem no espaço das relações. Logo, acredito que muitas vezes para lidar com a complexidade da reação emocional, é preciso lidar com ela também em relação.
AMIGA, APENAS MELHORE!
Existe ainda um risco por trás do discurso de olhar apenas para si: esse discurso quando levado ao extremo abre as portas para manipulação e relacionamentos tóxicos. Eu já permaneci em váriosssss relacionamentos tóxicos porque achava que meu incômodo indicava um sinal de falha na minha personalidade e uma oportunidade de crescimento pra mim. Eu pensava que quando eu mudasse, aí sim a relação melhoraria. Doce ilusão.
Um exemplo dessa lógica, é a prática de um grupo chamado “Mandala da Prosperidade”, na qual mulheres investem seu dinheiro teoricamente para apoiar na realização dos sonhos umas das outras, mas muito raramente tem o retorno prometido do dinheiro investido. A justificativa para o dinheiro não retornar é que elas estão “vibrando na escassez”, ou que ainda não “queimaram suas crenças limitantes”. E com isso perde-se de vista que se trata de um esquema de pirâmide e que existe uma falha inerente ao design dessa relação.
Emoções são como guias
Gosto de pensar que nossas emoções não são um problema a se livrar, mas como importantes ferramentas disponíveis no nosso corpo. O medo, por exemplo, foi uma emoção fundamental para a sobrevivência das nossos ancestrais. Da mesma forma, se eu estou sentindo alguma emoção incômoda pode ser um sinal de que algo não está bem.
E o que acontece quando a gente ignora esse sinal - ou enxerga apenas uma parte reduzida dele? Perdemos a oportunidade de realmente evoluir (como indivíduo e também as relações). E pior, ignorar uma emoção pode criar a necessidade do nosso corpo de amplificar esse sinal - por exemplo, o que era uma ansiedade pode virar uma crise de pânico.
Já parou para pensar o que suas emoções podem estar te contando sobre a dinâmica das suas relações?
Emoções: como lidar?
Vou compartilhar um pouco do que tenho experimentado para lidar com a complexidade das emoções. Utilizo como base principalmente na proposta da linha do tempo emocional, proposta pelo psicólogo Paul Ekman em parceria com o mestre budista, Dalai Lama que propõe que nossas emoções se desdobram em 5 fases: pré condição, gatilho, estado, resposta e pós condição. ( Fonte: Atlas das Emoções),
Proponho aqui um olhar Amuta para o desdobramento dessa linha do tempo emocional incluindo o que ocorre no indivíduo, mas também no ambiente e na relação, e com foco nos desdobramentos das emoções em nossos relacionamentos.
1. Pré condição: (Interna + Externa)
Para que uma situação nos desperte uma determinada emoção, existe um estado anterior ao fato ocorrido que influencia no modo como ele é percebido por nós. Esse estado é a pré-condição, e ele envolve fatores internos e externos:
Pré condição Interna: É o meu estado físico ou de humor quando o fato aconteceu. Se eu estiver com fome, sem dormir ou cansada, tenho mais chances de ser atravessada por uma emoção como raiva.
Pré condição Externa: É como o ambiente está configurado, desde os aspectos mais grosseiros, como um ambiente barulhento, bagunçado, desconfortável ou verticalizado que irá influenciar em uma emoção de raiva, até configurações do campo sutil, como por exemplo acabar de presenciar uma interação passivo agressiva
O que faço com isso?
“Não estou com energia para essa conversa difícil”: Quando percebo a influência da pré-condição interna nas minhas emoções, começo a identificar melhor os momentos que estou ou não disposta a certas interações.
“Esse ambiente está influenciando na irritação das pessoas”: quando percebo a influência do ambiente, começo a agir como agente de transformação do meio onde estou inserida.
2. Gatilho: (Evento + Base de dados)
O gatilho é o que acontece segundos antes de experimentarmos a emoção, ou seja, o fato que influenciou em como me senti. Um gatilho é sempre a união do evento (o que de fato aconteceu) com a minha base de dados (ou seja, nossas crenças e histórias).
Eu acredito que a base de dados é individual e também coletiva:
Individual: tem a ver com as minhas histórias, crenças e valores relacionados a aquele acontecimento. Por exemplo, “estar na casa de uma amiga que solta seus cachorros” pode gerar raiva em alguns e alegria em outros dependendo do que eu já vivi com cachorros na minha vida.
Coletiva/Cultural: são os padrões de interação partilhados coletivamente que influenciam em como as pessoas se sentem nas situações. Toda família, empresa, comunidade tem sua base de dados culturais, crenças e histórias compartilhadas que informam se algo é “bom” ou “ruim”. Por exemplo, se alguém arrotar na mesa, em algumas culturas vai trazer uma emoção de nojo e em outras será natural.
O que faço com isso?
Sabendo que o gatilho está atrelado a base de dados, sei que as coisas não são inerentemente boas ou ruins, e posso abrir espaço para conversas significativas. Palavras - como amor, traição, justiça, e fatos - como soltar cachorros, arrotar, pedir um favor - são sempre contextuais, e tem diferentes significados para cada indivíduo.
E sabendo que as crenças e histórias que compartilhamos coletivamente também moldam como vamos nos sentir, posso abrir espaço para novas conversas coletivas que facilitam a emergência de uma base de dados constantemente atualizada e que sirva melhor as nossas relações.
3. Estado (físico + psicológico)
O estado é como nos sentimos, física e psicologicamente. A raiva produz uma alteração no meu estado psicológico e uma resposta física (como a voz embriagar, o coração acelerar, o rosto corar, desviar o olhar).
Emoções condicionam comportamentos. Todo mundo sabe que seu comportamento será muito diferente se estiver animado ou cansado, triste ou alegre, tranquilo ou com raiva.
O que eu faço com isso?
Que algumas emoções nos desgastam e outras nos regeneram é um fato, mas isso não significa que devemos fugir de emoções difíceis e buscar apenas emoções gostosinhas.
Podemos ampliar nossa capacidade de perceber como estamos nos sentindo, encontrar maneiras de conversar com nossas emoções, criar espaços seguros para senti-las sem julgamento, e encontrar fontes de regulação emocional para não agirmos atravessados por elas.
4. Resposta (construtiva ou destrutiva?)
A resposta é o que fazemos após experimentar uma emoção, é como agimos nas nossas relações a partir do que sentimos. Nossas respostas podem ser construtivas, e ajudar a nutrir as relações, ou destrutivas, e atrapalhar essas relações.
A nossa maior tendência é produzir uma resposta destrutiva, baseada no comportamento primitivo de atacar ou fugir.
Comportamento de fugir:
Tendência paralisante: quando a emoção é muito desafiadora para nós, às vezes as rejeitamos e criamos uma ilusão de que como não há nada que possa ser feito desistimos de fazer qualquer coisa. Perdemos a oportunidade de compartilhar com o outro como nos sentimos e de criar maior abertura e conexão.
Tendência solucionista: não olhamos para o que estamos sentindo e criamos uma ilusão de uma solução fácil para não ter que olhar profundamente para as emoções. Centralizamos em nós uma pretensa solução simples para um problema complexo, e nossas relações perdem a capacidade de crescer a partir do que emerge (e pode ir formando um caldeirão prestes a explodir).
Comportamento de atacar: existe uma série de maneiras de atacar, especialmente quando acreditamos que nossas emoções são responsabilidade do outro, e elas podem ser psicológicas, físicas ou morais. Abaixo alguns exemplos
chantagem emocional: “se você me amasse, faria isso”
tentar trazer pessoas para o seu lado: “todo mundo sabe que você faz isso”
provar seu ponto: "você não está entendendo"
insultar: "você é um monstro"
punir o outro, ignorar ou cortar completamente
culpar ou envergonhar o outro: “você não respeita nem a sua mãe”
ameaçar: “eu vou embora”
usar o passado contra o outro: "você é assim desde criança"
Qual seria então uma resposta positiva?
Paul Ekman e Dalai Lama reforçam a importância de respeitar o período refratário, aquele espaço de tempo em que a emoção está muito forte e tem muito poder sobre você. Acredito que o período refratário pode durar segundos, dias, meses ou até anos e que ele não precisa ser um processo solitário.
Ter ao nosso lado relações de empatia e abertura, onde podemos compartilhar nossas emoções sem rejeitá-las ou tentar consertar, cria espaço em nós para abertura, e para acessar maior sabedoria.
Provavelmente essas relações de apoio do período refratário não serão com aquelas pessoas envolvidas na situação que me despertou um gatilho. Mas quando eu tiver tido o espaço necessário para processar minhas emoções é muito positivo voltar para os envolvidos e criar uma oportunidade de conexão e consequente evolução da relação. .
(trecho inspirado na leitura do livro “Quando tudo se desfaz” promovida pelo portal OLugar e no conteúdo produzido pela psicológica Nicole LePera)
5. Pós condição:
A pós condição é como ficamos logo depois da resposta. Nossas relações crescem quando temos oportunidade de sermos quem somos por inteiro. Por isso, ao admitir que emoções nos atravessam, e que podemos fazer ajustes constantes em nossos relacionamentos tem sido pra mim essencial para criar relacionamentos verdadeiramente evolutivos e saudáveis.
E você? Como tem lidado com as suas emoções?