Todo tipo de sofrimento é sintoma de falta de comunidade. Sem comunidades a gente fica mais doente, tem mais propensão a ficar deprimida e ansiosa, e todo o nosso corpo sente o isolamento como um ataque físi
co. A gente fica mais sobrecarregada, as empresas produzem menos, as pessoas ficam mais desengajadas, a criminalidade aumenta, a polarização se amplia e ideologias totalitaristas ganham espaço. Não é exagero dizer que comunidade é aquele aspecto chave que pode mudar todos os outros.
E o que é comunidade? Eu entendo que comunidade é um tipo específico de organização social que ao reunir pessoas faz com que elas sintam que pertencem. Partindo dessa definição, na qual o pertencimento é central para a experiência de comunidade, tenho refletido quais ações práticas e marcos vão nos aproximando de uma real experiência comunitária.
Foi aí que me veio a ideia de criar uma jornada da comunidade, uma jornada do “eu” para o “nós”. Com essa jornada em mãos eu comecei a perceber coisas como: “esse é um próximo passo importante para esse grupo”, “nossa, estou tentando fazer uma coisa aqui, mas essa base lá atrás ainda não está bem estruturada” ou “ as relações estão se deteriorando, existe algo que eu possa fazer?”.
Essa ferramenta pode te ajudar, como me ajudou, a visualizar onde você está nessa construção e o que você pode fazer para de fato aprofundar a nossa experiência comunitária.
1. Isolamento: “Me sinto isolada, sou uma forasteira aqui”
É quando nos falta aquela sensação que fazemos parte de um grupo - que somos importantes, necessárias, valorizadas e que temos com quem contar. Quer ver alguns sinais de que estamos isoladas? Não temos com quem compartilhar sonhos, problemas e desejos, nos falta companhia para os momentos de diversão e celebração, nossa vida é pesada e temos muitos medos em relação ao futuro.
2. Conexões: “Me sinto conectada a algumas pessoas”
A gente sai do isolamento quando se dá conta dele e resolve então fortalecer e aprofundar conexões. Nesse momento muitas das nossas necessidades afetivas passam a ser atendidas. Mas cada uma tem sua própria vida - seu trabalho, suas viagens, suas namoradas -, e falta algo para que a gente se sinta como coletivo. Muita gente encontra uma parceria romântica e pára nesse estágio, mas isso pode ser uma armadilha - por mais significativa que seja uma relação amorosa ela não pode ser a única da nossa vida.
3. União: “Consigo reconhecer o que nos une”
Relações antes dispersas, começam a facilitar a emergência de um grupo quando identificamos o que temos em comum. Muita gente acredita que uma comunidade precisa ter um propósito, mas eu percebo que aquilo que nos une é uma conjunção de fatores como interesse, propósito, valores, tais como: somos mães que gostam de corrida, somos as mulheres negras da organização, acreditamos em aprendizagem livre e autodirigida, temos o propósito de lidar com desafios globais em escala local.
4. Fronteira: “Criamos uma fronteira, estamos associadas”
Um passo importante para qualquer comunidade é a definição de uma fronteira, que demarca quem está dentro ou fora e como posso entrar e sair. A fronteira nos dá algum nível de segurança e de clareza de que pertencemos a algo. Em grupos mais informais, percebo que a criação de um grupo de Whatsapp muitas vezes é um rito de passagem importante para uma comunidade. É o momento em que temos clareza de quem são as pessoas presentes, além de ser a primeira criação de símbolos identitários - um nome e uma foto para o grupo. Mas uma fronteira pode ser uma conversa que define a relação, uma mudança de status no Facebook (RIP), uma foto nas redes sociais, o nome das pessoas no site, uma carteirinha de um clube.
5. Experiências: “Vivemos experiências e rituais que tornam minha vida mais significativa”
Não faltam memes que representam o quanto é difícil encontrar as amigas na vida adulta. Os encontros são muito esparsos para que a gente se sinta em uma comunidade, é difícil encontrar uma data que todas possam e os encontros são frequentemente adiados.
É aí que a gente pode dar um passo importante - criar experiências e rituais. Por exemplo, vamos correr todo domingo de manhã, tomar café da manhã juntas uma vez por semana, encontrar para aprender sobre um tema juntas.. A experiência está relacionada ao que nos une, e ela não precisa ser toda semana, mas é importante que tenha uma frequência definida. Quando a experiência já está marcada na agenda, as pessoas conseguem se planejar para ir e, mesmo que nem todas estejam presentes, o encontro acontece com quem está presente. Pouco a pouco outras experiências e rituais vão surgindo e fortalecendo ainda mais o grupo e é aí que a comunidade começa a se tornar realmente relevante na nossa vida.
6. Validação: “Estou à vontade para ser eu, estou em casa”
Nesse ponto já sentimos forte conexão com o grupo, mas pode acontecer de eventualmente a gente se sentir desenergizada nas relações. Isso é muito comum porque normalmente os nossos padrões de interação nos levam a desconexão. A gente se sente nutrida quando é vista, validada e reconhecida por sermos quem somos.
Quando somos julgadas, interrompidas e negligenciadas temos receio de não sermos aceitas, e se não somos aceitas como somos não há pertencimento. Percebendo o quanto a dinâmica que rege as relações é importante precisamos dar visibilidade para esse modo de se relacionar e até propor alguns rituais que ajudam a sustentar essa qualidade. Pouco a pouco vai se tornando natural esse modo de se relacionar e começamos a nos sentir cada vez mais à vontade para ser quem realmente é.
7. Papéis: “Reconheço meu papel e contribuições únicas”
Quanto mais as pessoas se validam e se reconhecem, mais elas destravam o potencial umas das outras. Assim, elas vão ganhando clareza do seu valor próprio e das contribuições únicas que podem fazer para aquele grupo. É aí que os papéis começam a aparecer: uma fazr playlists, outra faz a curadoria de locais, outra cozinha, a outra é o alívio cômico do grupo, outra é ótima ouvinte, e assim todas assumem um ou mais papéis, formais ou informais, na manutenção da comunidade.
Muitas comunidades e organizações falham em tentar distribuir cargos e funções, sem que haja espaço para que cada pessoa descubra como quer e pode usar seus talentos e interesses em prol daquele grupo, e qual valor que elas têm ali. Se esse for o seu caso, pode ser útil voltar no item anterior dessa jornada e fortalecer as relações de validação e apreciação. É interessante notar que quanto mais as pessoas reconhecem que podem contribuir com o grupo, mais elas se sentem conectadas e pertencentes e, assim, um ciclo positivo é alimentado.
8. Apoio: “Cuidamos umas das outras, pedimos e oferecemos ajuda”
Vivendo em uma cultura que supervaloriza a independência e o individualismo, tendemos a pensar que pedir ajuda às nossas amigas pode configurar na criação de uma dívida, quando na verdade é uma forma de fortalecer nossas relações. Quando ajudamos as pessoas nos sentimos úteis, criamos mais intimidade e até nosso corpo sente o prazer de poder ajudar.
Pra mim esse é um ponto de virada importante dessa jornada do “eu” para o “nós” e de um grupo realmente sentir-se parte de uma comunidade. É quando começamos a perceber que não precisamos dar conta de tudo e que podemos contribuir de maneiras significativas uns com os outros. Me arrisco a dizer que sem cuidado e apoio mútuo não somos comunidade.
9. Interdependência: “Esse problema não é seu, é nosso”
Enquanto na fase anterior a gente se ajuda pontualmente, ainda enxergamos que nossos desafios são separados. A diferença é sutil mas muito significativa - uma coisa é fazer um favor para você, outra coisa é enxergar que o seu desafio também é meu. Percebo que dar um passo rumo a interdependência é um dos pontos mais difíceis de transpor na construção de comunidades, afinal, muito é difícil para nós ocidentais nos percebermos como coletivo e tendemos a pensar que se nos coletivizarmos um pouco mais vai tornar nossas relações muito complexas, e que vamos perder nossa autonomia e individualidade. Exemplos: creche parental, moeda social, money pile, coliving, ecovilas ou associações de bairro que tratam e resolvem as questões de infraestrutura coletivamente, movimentos educacionais como escolas livres que se juntam para estruturar e sustentar a educação das crianças, times autogeridos - como grupos de agricultores que plantam diferentes alimentos e distribuem entre si toda a safra e o lucro da produção.
10. Movimento: “Temos espaço e condições para cuidar das tensões que emergem na nossa relação”
Quanto mais dividimos aspectos das nossas vidas com outras pessoas, mais questões e divergências podem começar a surgir. No começo essas questões podem ser bem desafiadoras e é normal pensar em desistir. Tomar decisões individuais é muito mais fácil que em grupo e dá aquele medinho de que as relações poderiam se deteriorar de vez. É o que acontece com muitos coletivos. É aí que a gente começa a instituir espaços de cuidado, estruturas para que o conflito saudável possa emergir, e a gente possa conversar sobre nossos desafios e tensões e propor estratégias, acordos e rituais que nos ajudam a nos organizarmos. Com o tempo algumas estruturas libertadoras vão surgindo e vai ficando cada vez mais fácil conviver e trabalhar juntas.
Me sinto pertencente
Quando conseguimos construir uma comunidade forte, onde nos sentimos pertencentes, vamos nos ver cada vez menos isoladas. A gente sente que não importa o que acontecer na nossa vida, teremos com quem contar, nos sentimos menos sobrecarregadas, nossa vida se torna mais leve, e também mais divertida, vibrante e saudável.
Isso não significa que a relação não precise constantemente de cuidado e movimento. Mais que uma jornada linear, essa é uma jornada evolutiva, afinal as relações são complexas e relacionamentos saudáveis são aqueles nos quais estamos disponíveis e atentas para nos adaptar conforme as necessidades que emergem. Ou seja, em algum momento o que nos uniu no passado pode não fazer sentido mais, ou as experiências que gostávamos de fazer perdem o sentido, ou os acordos estão nos aprisionando, ou as relações estão se deteriorando e esse conteúdo pode funcionar como um mapa para perceber o que pode ser feito para regenerar o senso de comunidade.
Me arrisco a dizer que assim como nossos ancestrais só sobreviveram porque aprenderam a viver em comunidades, nós também só sobreviveremos nesse planeta em chamas se aprendermos a regenerar nossas comunidades. Por isso o convite: vamos juntas nessa missão?